quinta-feira, dezembro 28, 2006

Renascimento - Um conto sobre a amizade



Foram tempos tenebrosos, aqueles. Por mais belos que estivessem os dias, por mais luminosidade que as manhãs daquele verão quente lhe oferecessem, ela continuava indiferente mergulhada nas trevas para onde, por sua culpa, se tinha atirado. “Deixaste-te cair no mais fundo dos abismos e porquê? Para quê? Estúpida! Burra!” pensava para consigo.

Havia já uns anos que tinha tatuado no corpo e na alma a palavra perda. Devido a essa perda e ao brutal desgosto que lhe adveio, isolou-se do mundo. Tornara-se uma solitária; por vezes era lobo outras capuchinho vermelho, conforme a telha. O que queria mesmo era não resistir àquela dor que lhe moía a alma e lhe magoava o corpo. Resistiu; odiava-se por isso.

Como se não bastasse, tinha tido nos últimos tempos um comportamento verdadeiramente vergonhoso. Sentia nojo de si própria. Aquela solidão excessiva estava a endoidecê-la.

Mas, apesar da sua alma ansiar por sair do buraco em que se encontrava, a sua razão não lhe facilitava a tarefa. Incompreensivelmente, ela tinha prazer no que sentia. “És mesmo uma anormal! Se ao menos percebesses porque gozas por chafurdar na lama!” mas não conseguia perceber porque tinha feito aquilo. O entendimento do que se passava consigo, era algo que o seu cérebro já não processava; talvez para se defender de algum curto-circuito que definitivamente a mandasse para o limbo. Tinha perdido tudo; discernimento, coragem, crédito e, sobretudo, amor-próprio. Apenas lhe restava aquele poço onde se deixara cair.

Agarrou-se como náufraga à sua culpa e à sua dor apenas para sentir alguma coisa e inconscientemente sobreviver. “Viraste uma masoquista emocional, minha maluca! Por quanto tempo terei paciência para me aturar?”

Toca uma ária da Cavalleria Rusticana, ela sai do torpor em que se encontrava e atende o telemóvel.

- Tá lá? - Ouviu uma voz feminina perguntar. - Ó mulher o que é feito de ti que ninguém te vê? Telefonei para saber se estás viva, pá!

- Tou viva tou, infelizmente! O que queres?

- Ó pá o que te aconteceu? Bolas, não te oiço bem, parece que falas do fundo de um poço! - Dizia a voz entrecortada com pancadinhas no telemóvel.

- E falo! Tou no mais fundo dos poços e tou muito bem. Liga-me no dia do meu funeral. Tchau! - Desligou. “Puxa, como é que esta gaja adivinhou que eu estava num poço? O raio que a parta!” pensou. Adormeceu.

Acordou sobressaltada com o toque insistente da campainha da sua porta. A resmungar, despenteada e trôpega abriu a porta sem sequer tentar, antes, saber quem era.

- Ai mulher, como tu estás, pareces uma morta viva daquelas saídas de um filme de terror de terceira categoria! - Disse Sofia com uma grande dose de horror estampada no rosto. - O que se passa contigo? Ainda não superaste pois não, amiga? Mas já lá vai tanto tempo, querida. Deixa-me ajudar-te! - Disse-lhe abraçando-a.

- Fiz uma coisa horrível que quero contar-te! - Respondeu. Depois de desfiar todo rosário do seu pecado, perscrutou o rosto de Sofia tentando perceber se esta iria continuar sua amiga. Sofia limitou-se a abraçá-la e disse-lhe numa voz imperativa que não admitia ser contrariada:

- Vai pôr-te bonita. Vamos sair!

Como um autómato, lá foi para o duche e a seguir vestiu o primeiro trapo que lhe apareceu mal abriu o roupeiro. Quando surgiu à frente de Sofia, esta olhou-a franzindo o sobrolho e disparou:

- Se não consegues melhor que isso, tudo bem. Vamos!

Viu-se arrastada para uma esplanada onde se encontravam Ana e Paula que ficaram estupefactas ao vê-la.

- Já sei que não estou uma beleza, mas livrem-se de dizerem uma palavra. Tenho de vos contar uma coisa horrorosa que fiz!

E lá contou a história de novo, enquanto Sofia revirava os olhos enfadada.

Ficou à espera de uma reacção de forte desaprovação mas Ana e Paula limitaram-se a dizer-lhe: - Foi feio o que fizeste, mas vais torturar-te para o resto da vida? - E ainda:

- Será, que viraste sado-maso e encontraste um novo lenitivo para a tua vida? Esquece mulher, pecados, todos nós cometemos, caramba!

Meia hora depois chegou Cândida com o marido, João. Sem mais delongas, lá lhes contou o que tinha feito. Ana e Paula enfastiadas bebericavam as suas colas bacardi enquanto Sofia estava à beira de um ataque de nervos.

- De facto, querida, isso nem parece teu, mas pronto, dá para ver que estás imensamente arrependida e é isso que importa! - Disse Cândida olhando João de um modo autoritário solicitando-o para a apoiar.

- Não te importes mais com isso! - Foi o que saiu ao pobre homem, acompanhado de um encolher de ombros.

A tarde corria inexoravelmente, quando surgiram Inês, Susana, Miguel e Pedro. Depois dos “Ah” e “Oh” de surpresa por a verem viva, apesar da cara de prisioneira de guerra, ela preparou-se para voltar à carga com a sua história. Sofia não aguentou mais e berrou:

- Arre, já chega mulher, não aguento uma quarta vez! Já toda a gente percebeu que fizeste porcaria e da grossa, mas por favor, não estejas numa de Egas Moniz a carregar com as culpas do mundo e tira o raio da corda do pescoço; até parece que mataste ou roubaste alguém, caraças! Se queres continuar com essa história, o melhor é escreveres um mail e enviá-lo à malta que falta.

- Se calhar achas que aqui o pessoal é tudo uma cambada de santos! - Disse Paula dando uma risada. – Sabes? Agora até gosto mais de ti porque percebo que também falhas e fazes porcaria. Olha que às vezes até me irritavas!

- Só falta perdoares-te a ti mesma! - Acrescentou Ana.

- É, pelo menos agora pareces um pouco mais humana aos nossos olhos. – Disse Cândida. – A minha esperança de te ver um dia completamente solta é neste momento muito maior. Solta-te mulher!

- Desde que não sejam gases, por favor! - Rematou João.

Pela primeira vez, em muito tempo, deu uma sonora gargalhada. Reparou que o céu tinha azulado mais e deixou que a luz do sol lhe penetrasse morna e doce o rosto. Estava rodeada de gente que verdadeiramente a amava, apesar das suas neuras solitárias, longuíssimos silêncios e pecados. Queria voltar a viver e sair daquele maldito estado de alma a que ser humano nenhum deveria condenar-se eternamente. Desde muito jovem que aprendeu o significado das palavras amizade, perdão, tolerância, esperança e solidariedade. Desta vez, apreendeu-lhes o sentido e cresceu imenso como pessoa. Olhou para cada um daqueles maravilhosos seres em jeito de reconhecimento por estarem ali, por existirem, por a amarem.

Renasceu.

5 comentários:

nnannarella disse...

Gostei imenso.
Está lá o "grão" da escrita.
Humor. Capacidade de agarrar.
(Percebe-se porque é que a Literatura vem em primeiro lugar nos teus "interests".)
:)
Fiquei a morrer de curiosidade em saber qual a grande asneira cometida pela protagonista...

Duca disse...

nnannarella

Acreditas se te disser que nem eu própria sei? É que este conto é pura ficção!
Fico particularmente satisfeita por teres gostado. Obrigada.
Beijo

nnannarella disse...

Curiosamente, o conto tem tudo a ver com He aprendido a sufrir relajadamente" e sonriendo, acrescento eu.

Acredito que nem tu própria saibas que asneira fosse... Percebi a artimanha do suspense que, neste caso, pode ser tudo.:)(Até ficção.)

Beijo.
Sempre quis dançar um tango com a Carmen Maura, mas ainda não foi possível!

nnannarella disse...

Bem, aquela do "Sempre quis dançar um tango com a Carmen Maura, mas ainda não foi possível!" é cópia do que disseste e que esqueci de apagar. Queria fazer uma brincadeirinha com a frase, mas perdi a coragem. ih ih

Duca disse...

Perdeste a coragem??? Uma mulher como tu perde assim a coragem??? Hummm.... estamos tímidas?